por Márlon Jacinto Reis
Por mais de 500 anos, um precário Direito Eleitoral vem teimando em tentar provar aos brasileiros que democracia é assunto sério demais para que dele possam cuidar as pessoas do povo.
Entre a Colônia e a Primeira República o país conviveu com o denominado “sistema de verificação de poderes”, por meio do qual o processo eleitoral era presidido pelos membros do Parlamento.
Os métodos de seleção dos mandatários, até então, combinavam leis injustas (como a Lei do Terço, de 1875, que fixava a antecipadamente a proporção das vagas a serem ocupadas pela oposição, e a Lei Rosa e Silva, de 1904, que autorizava o “voto a descoberto”) com falsificações, abusos e violência.
São daquela época as “eleições a bico de pena”, onde quem de fato escolhia os novos mandatários não eram os eleitores, mas os mesários que, sozinhos ou com o concurso de falsários profissionais, elaboravam as atas reveladoras do “resultado” da eleição.
Era comum o voto dos mortos e daqueles que não mais residiam na vila. Por séculos não votaram as mulheres, os negros, os mendigos e os analfabetos.
Em certa época, os eleitores de oposição eram esperados à boca das urnas por agressores mercenários, conhecidos, conforme a região, como “capoeiras”, “capangas” ou “cacetistas”. A violência que promoviam não raro evoluía para as punhaladas e tiros de bacamarte. Costa Porto nos lembra que o ano de 1840, no Rio de Janeiro, entrou para a história como aquele em que se deram as “eleições do cacete”.
Ainda no Império, a certa altura, definiu-se que as votações ariam a ocorrer dentro dos templos católicos, para sensibilizar ou intimidar a capangagem. No Ceará, ficaram conhecidos como “cerca-igrejas” as hordas que, sob paga dos coronéis, invadiam os templos e faziam uso das próprias imagens e castiçais para arrebentar a cabeça dos que tentassem exercer o direito de voto.
Se mesmo após a utilização de alguns ou de todos esses mecanismos o resultado eleitoral não fosse o esperado, restavam outras alternativas: aos da situação, cuja eleição tão esperada não sobreviera, aplicava-se o “esguicho” (ou complementação fraudulenta da votação faltante); aos oposicionistas mais indesejáveis restava a “degola” (ou a pura e simples retirada de seus nomes da lista dos eleitos).
Não sem muitas baixas (o combate à fraude eleitoral era uma das principais bandeiras de muitos dos movimentos contestatórios da década de 20 e da própria Revolução de 30), surgiu o Código Eleitoral de 1932 e, com ele, a Justiça Eleitoral.
Desde então conseguimos, entre ditaduras e leis eleitorais casuísticas excludentes, trilhar alguns os rumo ao momento atual, em que sobrepaira a possibilidade de uma melhor definição dos rumos de nossa democracia.
Bem recentemente surgiram algumas novidades. Juntas, a nova Lei dos Partidos Políticos (1995), a Lei das Eleições editada em 1997 (que dotou as normas eleitorais de maior estabilidade) e a universalização da coleta eletrônica do voto superaram, apesar de suas imperfeições, as mais graves máculas do ado do nosso Direito Eleitoral.
Descrentes da possibilidade de burlar o resultado matemático da votação, os candidatos voltaram todas as suas energias à prática da mercancia eleitoral.
Os “cerca-igrejas” e “cacetistas” modernos não mais distribuem porretadas e punhaladas, mas dentaduras, chinelos, filtros, promessas de empregos e funções públicas, lotes, telhas, tijolos, areia e dinheiro. Tudo em porciúnculas cuidadosamente definidas, de modo que em nada se possa alterar a sorte daqueles que, na próxima eleição, terão que novamente bater à porta dos seus “benfeitores”. A motivação e a violência são as mesmas, as armas, todavia, mudaram.
Um grande o foi dado, em 1999, contra esta forma de agressão eleitoral, por meio da aprovação do primeiro projeto de lei de iniciativa popular da história do Brasil: a Lei nº 9.840, de 28 de setembro de 1999. Nos quatro primeiros anos de sua aplicação cento e vinte de candidatos a vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal e senador viram contra si proferidas sentenças em que se reconhecia a prática da captação ilícita de sufrágio (denominação legal da “compra de votos”). Desse total aproximadamente 80% foram já foram afastados dos cargos.
Curiosamente, às vésperas de novas Eleições Municipais, surgem agora no Senado Federal projetos voltados a tornar ineficaz a lei proveniente da mobilização de mais de um milhão de brasileiros.
A principal finalidade dos projetos é evitar a pronta execução das decisões judiciais que aplicam a medida de cassação do registro ou do diploma.
Argumentam os seus defensores que a eficácia imediata das sentenças e acórdãos, hoje expressamente itida pelo TSE, afronta os princípios constitucionais da “segurança jurídica” e da “presunção de inocência”. Tais afrontas, no entanto, inexistem. A lei afronta a coisa julgada, o direito adquirido ou o ato jurídico perfeito. Também não coíbe o exercício do direito de defesa ou o manejo de qualquer recurso. Tampouco cuida de matéria penal, a cujos específicos lindes a Constituição voltou o primado da inocência presumida.
Em lugar de buscar as lições dos grandes constitucionalistas brasileiros que estudaram tais princípios, os apressados defensores dessa alteração aram a repeti-los e a levantá-los como bandeiras de sua batalha injusta. Esquecem da necessidade de proteção ao princípio da igualdade e de que vivemos num Estado que se proclama democrático e de Direito, o que significa, dentre tantas outras coisas, que os candidatos devem agir conforme as leis na busca dos mandatos almejados.
Todos sabemos que a exigência do trânsito em julgado nas decisões da Justiça Eleitoral sempre ensejou a interposição sucessiva e protelatória de recursos, permitindo que os mandatos se cumprissem em sua inteireza antes da superveniência do esgotamento das vias impugnativas.
Os projetos que visam à mutilação da lei de iniciativa popular bem lembram o “esguicho” da República Velha, naquilo em que permitem o exercício do mandato por quem não logrou legitimamente alcançá-lo. Aos honestos e aos despossuídos, restará a nova “degola”, decorrente da preponderância daqueles que, não fosse o amor ao ilícito, jamais seriam eleitos para ocupar cargo algum.
Márlon Jacinto Reis é Juiz de Direito da Comarca de Itapecuru-Mirim (MA). Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral